Trecho do livro "As crônicas do abismo", de Márcio Couto
O autor Márcio Couto esteve no Clube da Leitura de 27/05/14. Ele leu
um texto de seu livro, "As crônicas do abismo". Abaixo, um trecho.
Em certos casos, quando os
clientes lhe pedem cartas manuscritas, tem que se preocupar também com a
semelhança caligráfica, Gabriel é muito preciso nisso, estuda por dias – às
vezes semanas – obsessivamente a caligrafia alheia, vira noites e mal se
alimenta. A imersão parcial ajuda bastante o empregar da pressão e da curvatura
precisa das letras, além da emoção fingida ao escrever o produto final, as notas
profundas, vacilos da tinta durante caminhos mais longos pelo papel, as
distorções do caráter com os pingos largos nos “is”, excessiva necessidade de
perfeição que denota baixa autoestima evidenciada por letras homogêneas e
esféricas, por vezes um vão entre a pauta e a base da escrita, além de
necessidade de afirmação reprimida quando largos garranchos intercalam
caprichos caligráficos, bipolaridade, tripolaridade... engolir vogais
propositalmente revela profundos traumas de infância, Estocolmo, Elektra,
Édipo, Curtis. Estudou em cursos especializados e conversou com profissionais, abrangeu
pesquisas – muito por alto – noutros campos não muito relacionados, mas que
revelou algum interesse a partir dos estudos iniciais, como criptoanálise e
esteganografia. Tornou-se um hobby e um bom exercício prático, houve uma vez em
que um cliente pediu para que Gabriel pusesse uma mensagem oculta na carta
solicitando que sua esposa pagasse ao cunhado; outro cliente apenas queria
ocultar a mensagem “Você é uma vadia” à filha violentada. Mas como Luís havia
pedido um simples texto redigido digitalmente, muito mais fácil e seguro,
apenas organiza os detalhes no papel enquanto com o laptop aberto, tal um
escudo, digita com a voracidade de uma libélula, consegue executar os dois ao
mesmo tempo.
– Já está escrevendo,
Gabriel? – pergunta Luís, com a boca cheia de arma.
– Já sim. – responde como
cacoete, franze o cenho, olhos de papel. – Tem certeza que não quer ler o
resultado antes de encerrar? – pergunta incisivo. Não é muito comum seus
clientes não quererem ler o resultado final, mas Luís já havia especificado em
reuniões anteriores que não se interessa por nada ali escrito.
– Confio em você. –
balbucia com um ferro entalado.
– Então, fique à vontade. –
encerra-se sem retirar os olhos da tela e do papel, quase voltou atrás e pediu
um café.
A arma dispara
automaticamente com o término da frase de Gabriel. O estrugido visceral ecoa
pelas entranhas inundadas por pólvora, lembra mais a um tremor que algo de fato
audível; sangue e miolos avermelhados voam pela parede atrás da cadeira,
escorrem pelo espaldar, o crânio desabrocha numa rosa escarlate encardida de
orvalho. A hemoglobina esguicha abundante, um chafariz, a pressão esfola as
cordas vocais estourando as artérias escoltando as paredes internas do pescoço,
enraizadas. Luís retesa, os pés balançam vivazes como quem procura por chão firme
para não escorregar, mas é sua vida quem escorrega, quem foge deslizando
plásmica pelo piso frio; os pés se interrompem, os dedos se contraem: o último comando
que se lembra de dar ao corpo antes da consciência desaparecer para sempre.
Desde moleque – quando cansado depois de correr, brincar, estudar ou trabalhar
– gosta de mexer os dedos no chão frio, ajuda a relaxar, e de fato é o que
começa a acontecer, e nem está mais por ali para notar: uma pena.
Os olhos de Luís tremeluzem
uma última vez enquanto o corpo derrama-se esvaído pela cadeira, sorvete
derretendo na mão em frente à sorveteria de Rosângela, gosta de assistir a
Cláudio se refrescar, jovem corredor, sobrancelhas grossas, namora a irmã de Luís.
Todas as quintas, Cláudio aparece na sorveteria após o treino do colégio, todas
as quintas Luís pula o recreio e aparece na sorveteria após o treino do
colégio, Cláudio engole o creme congelado grosseiramente, arrota, brinca com os
amigos, todos uns bárbaros; delicioso milk-shake de chocolate o da Senhora
Rosângela.
A brutalidade de Cláudio é
pose: quase ninguém percebe seu pescoço movimentar-se com ritmo e graça
enquanto o caldo marrom desce devagar pela garganta, Cláudio gosta de deixar o chocolate
por algum tempo na boca, saboreia antes de engolir serenamente. Luís
adora esse contraste, traço importante na maneira de como jovens viris bebem milk-shakes, colecionou muitos
outros traços do cotidiano de Cláudio.
Cláudio e Carla (irmã de Luís) estão casados, Carla é
uma bacia macilenta de amido e sódio, evita as classes de pilates para suturar
o esgoto da genitália através de transas rápidas com jovens tímidos e
vacilantes. Mudou-se para uma casa de algodão e compensado, quadrada e
insuportavelmente branca, no fim da Praia do Forte, vive o sonho; possuem
filhos, três, um mais pernóstico que o outro, todos batistas ex-Nova Vida, pois
lhes faltava foco, e cálcio. Após descobrir a natureza ambígua do irmão, Carla
repudia ao máximo que os três belos rapazes tenham contato com o tio: um deles cresceu
borrando de merda o pênis dos outros, já os outros borram de merda estrógena os
seus próprios pênis.
(do livro "As crônicas do abismo", Editora Verve, 2014)
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