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Mostrando postagens de outubro, 2014

São Paulo, 40 graus - Guilherme Preger

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São Paulo, 40 graus São Paulo, 40 graus, aqui ficou tudo um caos. Do alto do Edifício Copan, eu vejo a cidade, mas não vejo amanhã. Não chove, não cai água, só há suor e mágoa. Lá embaixo,   vejo multidões sedentas, sinto sedes irredentas. No asfalto calcinante, sufocam os ambulantes. Nas calçadas ao sol, está aceso o paiol. Mataram todos os mananciais, agora não vai ter paz. Chegamos ao fundo do poço, estava sem água e todo mundo está no osso. Os manos cavam fundo a terra que só minério encerra. Maluf furou por petróleo, mas só automóvel engole óleo. Agora é sem apelo, não sobrevive nem camelo. Nego te fez de otário, te chamando de dromedário. Construíram estrada e viaduto e puseram no tributo. Fizeram uma cidade para os carros e não há saliva para escarro. Gasolina tem bastante, mas a água é diamante. A cidade virou um sertão, mas secaram o coração. Dizem que o corpo é todo líquido, mas nego foi muito iníquo. Secaram os dias e a esperança, agora é cada um com sua dança. Todo m

Mote do encontro 28/10

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Texto lido por Daniela Ribeiro Os falsos cretinos (...) O trágico da nossa época ou, melhor dizendo, do Brasil atual, é que o idiota mudou até fisicamente. Não faz apenas o curso primário, como no passado. Estuda, forma-se, lê, sabe. Põe os melhores ternos, as melhores gravatas, os sapatos mais impecáveis. Nas recepções do Itamaraty, as casacas vestem os idiotas. E mais: – eles têm as melhores mulheres e usam mais condecorações do que um arquiduque austríaco. Não sei se me entendem e se concordam comigo. Mas é o próprio óbvio. A olho nu, qualquer um percebe a ascensão social, econômica, cultural, política do idiota. Outro dia, passou por mim um automóvel das Mil e uma noites, sim, um desses Mercedes irreais, com cascata artificial e filhote de jacaré. Lá dentro ia um idiota flamejante . Desde Noé e antes de Noé, jamais um idiota ousaria ser estadista. É verdade que, na velha Roma, um cavalo foi senador. Mas o cavalo é um nobre animal, de maravilhoso frêmito nas ve

Partilha amigável - Clara I. P. Mello

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Partilha amigável - Toma, fica com ‘o sexo'. Acho que não vou mais usar. - Hum... é? Enão me dá. - Posso ficar com ‘a parcimônia'? Sei que era sua, mas é que eu nunca tinha tido, agora me acostumei e já não sei viver sem ela... - Tá, mas então você concorda em deixar ‘a desinibição' pra mim? - Se ela quiser, pode ficar... Quando recobrou a atenção no que estava se passando a sua volta, parecia que o pessoal da empresa de mudanças estava parado ali na frente dela esperando orientações há pelo menos uma hora. Levantou os olhos que estavam fixos num jarro de vidro e deu de cara com o Sr. Luiz, encarregado chefe da mudança. Na blusa dele leu: "Gato Preto", e daí pensou que ‘a sorte' não poderia ser partilhada. Ele e ela deveriam mantê-la porque o azar de um deles poderia comprometer os projetos de ambos. A sala foi-se esvaziando e já se ouvia o eco do apartamento vazio. Já nos últimos itens despachados viu que ia sobrando a caixa de fotogr

Um conto sobre o infinito - Francisco Ohana

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Um conto sobre o infinito A luz da rua empalidecia de indecisão o fim de tarde. Gostava de anoitecer porque as pessoas voltavam para casa, porque os sons começavam a ter eco, porque a brisa era fria. Porque as janelas ficavam brancas e amarelas e a vida parecia uma piscina. Um mecanismo artificial. Seguia as marcas de sapato depois de poças na calçada sobre as quais gente e gente. Chutava pedacinhos de galho, entrava numa loja de vestidos e ia ao banheiro. Procurava gotas secas de xixi na porcelana, denunciando que alguém, além dela, havia estado ali. Notava que os animais da noite (formigas voantes, libélulas e demais insetos) eram outros que os do dia – sabia de histórias de bichos com hábitos noturnos na mata detrás dos prédios. Olhava janela adentro nos andares baixos e via a cena repetida da caixa de música da vida particular. E, assim, ainda não existia dia seguinte no meio do ano. Não importava quantas cidades viesse a conhecer – seu mundo era um bai