Mote do encontro 07/04



Texto lido por Márcio Couto

De Profundis

 

 


“Sou muito mais individualista hoje do que jamais fui. Nada me parece ser do menor valor, exceto aquilo que a pessoa extrai de si mesma. Minha natureza está buscando um novo modo de autorealização. E é só com isso que me preocupo. E a primeira coisa que tenho de fazer é me libertar de qualque possível sentimento de amargura contra o mundo. Estou sem um tostão, e não tenho onde morar. Mas na vida há coisas piores que isso. Sou absolutamente franco quando digo que, a sair desta prisão com amargura contra o mundo e meu coração, preferiria mil vezes mendigar meu pão de porta em porta. Se não conseguisse nada na casa do rico eu conseguiria na do pobre. Os que têm muito são em geral gananciosos; quem tem pouco sempre compartilha. Não me importaria nem um pouco de dormir na relva fresca e, quando o inverno chegasse, buscar abrigo junto à acolhedora meda de feno colmada, ou sob a cobertura de um grande celeiro, contanto que tivesse o amor em meu coração. As coisas externas da vida hoje me parecem sem a menor importância. Você pode perceber a que intensidade de individualismo cheguei – ou, antes, estou chegando, pois a jornada é longa, e “onde há caminhos há espinhos”.
Claro que sei que pedir esmolas na rua não é o quinhão que me há de caber, e que, se algum dia me deitar na relva fresca na noite, será para escrever sonetos à lua. Quando eu deixar a prisão, Robbie estará à minha espera no lado de lá do grande portão de ferro rebitado, e ele é o símbolo não meramente de sua própria afeição, mas da afeição de muitos outros além dele. Creio que disponho o suficiente com o que viver por cerca de dezoito meses, em todo caso, de modo que, se não for capaz de escrever belos livros, posso ao menos ler belos livros; e que alegria pode ser maior? Depois disso, espero ser capaz de recriar minha capacidade criativa. Mas fossem as coisas diferentes: não me tivesse restado sequer um amigo no mundo; nenhuma casa, por piedade, abrisse suas portas para mim, tivesse eu de aceitar a trouxa e o roto andrajo da mais pura penúria: contanto que eu permanecesse livre de todo ressentimento, dureza e desprezo, seria capaz de enfrentar a vida com muito mais calma e confiança do que faria se tivesse um corpo em púrpura e linho fino, e a alma dentro de mim doente de ódio. E de fato eu não terei dificuldade alguma. Quando a pessoa realmente quer o amor, ela o encontra a sua espera.”

WILDE, Oscar. De Profundis. São Paulo. Editora Tordesilhas, 2015.        

 Wilde e Bosie

Oscar Fingall O'Flahertie Wills Wilde, um dos maiores escritores de língua inglesa do século 19, tornou-se célebre pela sua obra e pela sua personalidade. Sofisticado, inteligente, dândi, adepto do esteticismo (da "arte pela arte"), escreveu contos ("O Crime de Lord Arthur Saville"), teatro ("O Leque de Lady Windermere"), ensaios ("A alma do homem sob o socialismo"), e romances ("O Retrato de Dorian Gray"). No entanto, no seu apogeu literário, começaram a surgir rumores sobre sua homossexualidade, (severamente condenada por lei na Inglaterra). Oscar se envolveu com Lord Alfred Douglas (ou Bosie), filho do Marquês de Queensberry, que sabendo do relacionamento, enviou uma carta a Oscar Wilde, no Albermale Club, onde o ofendia e recriminava já no sobrescrito: "A Oscar Wilde, conhecido Sodomita". O escritor decidiu processar o Marquês por difamação. Depois tentou desistir do processo, mas era tarde demais. Um novo processo contra ele foi instaurado. Sua fama começou a desmoronar. Suas obras e livros foram recolhidos e suas comédias retiradas de cartaz. O que lhe restava foi leiloado para as despesas do processo judicial. Acabou passando dois anos na prisão, que lhe renderam obras comoventes como "A Balada do Cárcere de Reading" (1898) e "De Profundis", uma longa carta ao Lord Douglas.

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