O susto de saber-me deste jeito - Daniel Seidl de Moura





Recomendação de leitura por Vivian Pizzinga

O susto de saber-me deste jeito, de Daniel Seidl de Moura: livro de poesia para os prosadores também lerem.

O susto de saber-me deste jeito é um livro de poesia que o pessoal que escreve prosa deveria ler, porque o pessoal que escreve prosa (incluo-me entre esse pessoal) muitas vezes sente-se incapaz de produzir algum sentido diante de poesia ou, simplesmente, sente chiados no ouvido ao ouvir poesia. Mas O susto de saber-me deste Jeito, do Daniel Seidl de Moura, não chia. Não gera nenhum tipo de ruído estridente. É um livro que provoca impacto, o tipo de impacto lírico de quem aprecia o ofício da palavra. O livro possui três partes, Fumaça, Taxímetro Perpétuo e Susto, muito bem construídas. Aqui permito-me, por gosto, vontade e algum tempo, fazer as minhas construções de sentido face à poesia de Daniel Seidl. São minhas tais construções, são fruto de um subjetividade qualquer que posso traçar agora, por enquanto, sem contrato, mas, como todo bom livro, o texto aqui indicado se presta a muitas outras construções.

Os poemas/sonetos que dão início à  primeira parte de "O susto de saber-me..." como que fazem uma tentativa de auto-apresentação: partem de um eu, ou de um entendimento de si, de uma construção de algo que disso se aproxima. Uma vez que me apresento, que digo quem sou, que me defino, imagino-me como um todo coerente que cabe dentro daquela construção (até mesmo aqui, nessas construções que possuem a coerência apenas poética de imagens possíveis, ganchos desesperados que tentam alcançar alguma realidade). Quando tenho um eu na mão para mostrar a outra pessoa, a mim mesma, a um futuro, há um risco. Um sentido de eu na mão é sempre um risco. Fiquemos com isso, por enquanto, com esse risco (que, muitas vezes, nem sabemos que corremos). Fumaça é, portanto, a introdução a si mesmo e também ao livro, o começo da caminhada poética a que nos propomos. 


E então temos aí algumas joias líricas: “Quem quer que eu seja nunca rio/ e normalmente estou calado/ nos retratos que são meus”, ou “eu sou a garrafa espatifada contra o chão”, ou ainda “eu sou apenas um sociopata inofensivo/ sentado no último banco do ônibus vazio”, estes últimos versos compondo o Poema sinfônico para duas vozes, que também nos dá a chave para a segunda parte do livro: ele traz a definição de Amor e temos aí a chave que podemos guardar na bolsa (ou no bolso) para a porta da segunda parte, Taxímetro Perpétuo.

A segunda parte é o momento em que a busca de um eu, de um jeito próprio, de uma definição, parece só fazer sentido quando há um outro, ou quando se descobre que o eu é sempre relacional. Certos limites já não fazem tanto sentido pois aqui, se existem, os limites não separam, apenas criam. Temos mais algumas joias ao alcance dos olhos, exemplos mínimos de beleza e impacto: “Depois de foder a mulher amada/ o homem é sempre menos/ do que era”, ou então “Em ti me perpetuo este janeiro/ heróico de manhã, de noite lasso/ em ti derreto, em ti me liquefaço/ em ti eu sou verão o ano inteiro”, e também “O teu rosto se esparrama sem presságios”.

Finalmente, a terceira parte é como uma síntese, que não pode existir sem susto, uma vez que esse eu que estava na palma da mão, lá atrás, no momento de uma apresentação, esse eu que se descrevia, ainda que de modo lírico e desesperado, é talvez uma outra coisa ou tenha se tornado outra coisa. Não é sem susto, portanto, que encaro aquele eu na palma da minha mão e, no esforço de não deixá-lo escorregar e se espatifar contra o chão , me descubro, espantado, “deste jeito”.  


Sobre as joias, temos muitas, temos mais, nesse Susto final: “No dia em que fui arrancado/ do útero de uma anã prostituta/ três baleias encalharam na avenida Presidente Vargas” ou “Minha noite é um cemitério de navios./ Meus olhos capitulam em tempestades”, ou, enfim, “A luz da manhã/ explode em meu rosto/ feito um tiro”.

O susto de saber-me deste jeito, de Daniel Seidl de Moura, foi lançado pela Editora Oito e Meio em 2014. É livro de poesia fantástico. É poesia que nos serve, leitores e escritores do Clube da Leitura, para construir a prosa que cada um de nós quer construir. 

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