Mote do encontro (01 /09/ 15)
mote lido por Guilherme Preger
Nudez
No dia 8 de abril de 2005 teve lugar na Neue Nationalgalerie em Berlim
uma performance de Vanessa Beecroft. Cem mulheres nuas (na verdade vestiam
collants transparentes) estavam de pé imóveis e indiferentes, expostas ao olhar
dos visitantes que, depois de terem esperado uma longa fila, entravam por
grupos na grande sala do rés-do-chão do museu. A primeira impressão de quem
procedia à experiência de observar não só as mulheres, mas também os visitantes
que, tímidos e simultaneamente curiosos, começavam a observar aqueles corpos
que, bem vitas as coisas, estavam ali para serem olhados e, depois de andarem à
volta, como que numa ação de reconhecimento, das fileiras quase militarmente
hostis, se afastavam embaraçados, era de um não-lugar. Qualquer coisa que
teria podido e, talvez, devido acontecer, não tivera lugar.
Homens vestidos que observam corpos nus:
esta cena evoca irresistivelmente o ritual sadomasoquista do poder. No
início do Salò de Pasolini ( que reproduzira mais ou menos fielmente o modelo
sadiano das Cento e Vinte Jornadas de Sodoma), os quatro gerarcas que se
preparam para se fechar na sua Villa procedem vestidos à inspeção das vítimas,
que são levadas a apresentar-se nuas e atentamente examinadas a fim de suas
qualidades e defeitos poderem ser apreciados. E estavam vestidos, na prisão de
Abu Ghraib, os militares americanos diante do amontoado dos corpos nus dos
prisioneiros torturados. Nada de semelhante na Nationalgalerie: em certo
sentido, a relação parecia aqui invertida e nada era mais pérfido do que o
olhar aborrecido e impertinente que sobretudo as raparigas pareciam a cada
instante lançar sobre os espectadores desarmados. Não: o que deveria ter
acontecido e não acontecera, não poderia ser de modo algum uma séance sadomasoquista,
pródromo de uma orgia ainda mais improvável.
Todos pareciam na expectativa, como numa representação do Último Dia.
Mas, olhando bem, também aqui os papéis se tinham investido: as raparigas em
collants eram os anjos, implacáveis e severos, que a tradição iconográfica
figura sempre cobertos de longas vestes, enquanto os visitantes – hesitantes e
embiocados como estavam naquele fim de Inverno berlinense – personificavam os
ressuscitados à espera do juízo, que até a mais devota tradição teológica
autoriza a representar em toda sua nudez.
AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Lisboa, Relógio d'Água, 2010.
Giorgio Agamben nasceu em Roma em 1942. É um dos principais intelectuais
de sua geração, autor de muitos livros e responsável pela edição italiana das
obras de Walter Benjamin. Deu cursos em várias universidades europeias e
norte-americanas, recusando-se a prosseguir lecionando na New York University
em protesto à política de segurança dos Estados Unidos. Foi diretor de programa
no Collège International de Philosophie de Paris. Mais recentemente ministrou
aulas de Iconologia no Istituto Universitario di Architettura di Venezia
(Iuav), afastando-se da carreira docente no final de 2009. Sua obra,
influenciada por Michel Foucault e Hannah Arendt, centra-se nas relações entre
filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, política.
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