Mote do encontro (29 / 09/ 15)
Mote lido por
Daniel Russell Ribas
Réveillon e outros dias
Réveillon
Chegaram em casa. Dispensaram o taxista e entraram
pela porta da frente. Na sala, os móveis intocados desde o falecimento da
mulher pareciam aguardar seu retorno; no entanto, o morador remanescente
desacreditava definitivamente, agora, que isso pudesse ocorrer. Observara de
perto a destruição irremediável das coisas, seja após a morte ou mesmo antes
dela. E de que valeria uma ressurreição, afinal de contas? Foram os dois para a
cozinha, onde o velho, sentindo-se esvaziado de todas as suas atribuições e
seus significados, sinalizou para o filho: “Acho que cheguei ao meu fim.” O rapaz
se consternou; sabia que parte dessa sensação autoapocalíptica estava
relacionada com a sua partida. “Não acho que é seu fim, mas entendo. Se for,
quero dizer que fico feliz que você tenha chegado até aqui.” Tentou alegrá-lo
ternamente; compreendia um pouco da angústia do pai e sabia que não havia muito
a fazer, não podia compensá-lo por todas as perdas. “Você fala isso porque não
é com você.” O velho estava mesmo irritadiço. “Espero que minha vez, assim como
a sua, chegue só no fim de tudo.” “Não me sobrou nada”, ele constatou demoradamente,
com mais tristeza que ira. “É porque, felizmente, tudo foi consumado.” As declarações
do filho não pareciam servir de grande consolo, o estado melancólico do pai
apenas mudou de direção: “Eu queria que você pudesse me ouvir.” “Nenhum filho ouve
o pai.” Gracejando, o jovem tentou consolá-lo novamente, igualando-o a todos. Diante
de seu silêncio prostrado, prosseguiu: “Às vezes, eu é que gostaria que você
fosse surdo também.” “Por quê?” O velho finalmente pareceu movido. “Porque te
ensinaria muitas coisas. Não deixaria as falas te distraírem da linguagem mais
profunda do mundo.” “Que é qual?” “Não sei ela toda, mas minha vontade de que
você fosse surdo acaba quando te vejo conversando comigo pelos sinais; creio
que tem a ver com isso.” “Não entendi.” “Nós dois sempre nos comunicamos como
ninguém; sempre tivemos um idioma que falava por intermédio de tudo: de nossas
mãos, olhares, palavras, todo o corpo. Todos os nossos gestos tinham o mesmo
valor, e acho que isso nos fez compreender um ao outro quase inteiramente.” O pai
o interrompeu: “Você acha que uma pessoa pode compreender a outra quase
inteiramente?” “Não sei. Só compreendi que você ser surdo, ou não, não fez
diferença. O fato de você aprender os sinais me mostrou amor e me deu
proximidade. Você viveu de um jeito mais difícil pra que eu vivesse de um jeito
melhor.” O velho ficou sem mover as mãos por um momento, o que também era uma
forma de silêncio. O filho continuou: “Eu nunca vou esquecer quando você me
mostrou a primeira palavra que aprendeu em sinais: ‘amor’. Você fazia letra por
letra, e eu acompanhava os seus gestos transcrevendo aos poucos uma palavra já
pronta em mim.” O pai, enfim, abriu um pequeno sorriso, encantado pela
lembrança. O outro prosseguiu: “Nesse dia você me ensinou mesmo o amor. Amor não
era o desenho do gesto, era o gesto por trás do desenho.” “Você me culpa por
não aprender do jeito certo?” “Você aprendeu os sinais pra conversar comigo, eu
aprendi a usá-los letra por letra pra conversar com você.” “‘Amor’ é só uma mão
no coração, não é?” “Amor é ter aprendido o idioma um do outro; criar o nosso.”
O silêncio imóvel do velho foi ainda mais extenso; a emoção benfazeja também o
assustava, pelo sofrimento de poder perdê-la depois. “Eu tenho saudades disso,
de ser pai. De tudo que passamos e acabou.” “Não acabou. A lembrança é uma
forma de existência.” “Eu sei. O que me deixa triste é tudo isso ter passado.” “Ter
passado isso é justo o que construiu minha felicidade.” “Acho que ‘passar’ tem
significados diferentes pra mim e pra você.” “Talvez... Então é o caso típico
em que um nome atrapalha. Se não ouvisse a palavra, você saberia o que é
passar; o que fica atrás da palavra e ela esconde.” “Você é o melhor filho que
eu podia ter.” “Por ser filho seu.” “Eu...” – A frase se interrompeu,
enrijecida na mão do velho. O que acontecera? Era como se um cabo rompesse
dentro de si. Seu corpo, desativado repentinamente, desmoronou sobre o chão. O filho,
assustado, correu em sua direção. “Você está bem?” O desfalecido respondeu
negativamente, apenas movimentando a cabeça. “O que tá sentindo?”, o jovem
soletrou rapidamente. Convalescente, ele respondeu com mãos epilépticas: “Estou
surdo.” “O quê?” “Não ouço. Só...” Tentou pronunciar alguma coisa, para ver se
conseguia escutar ao menos o som da própria voz dentro do crânio, mas as cordas
vocais eram um poço seco. “Eu vou chamar alguém.” “Não; fica...”, o pai
suplicou, percebendo que suas palavras estavam se esgotando. Sua visão, como se
ofuscada por uma luz inédita, tornou-se cada vez mais branca. Praticamente cego,
não conseguia mais enxergar os gestos do filho; percebia apenas um som grave e
profundo, que logo compreendeu ser o do seu próprio sangue fluindo lentamente
pelo corpo. Ainda tentou esboçar alguns gestos, deixar uma última mensagem para
o filho, mas, além dos sentidos, parecia estar perdendo parte da cognição. Suas
mãos se moviam com dificuldade e, entorpecidas como em um sonho, flutuavam entre
“amor” e “passar”. O filho, então, o abraçou com força e digitou vigorosamente
sobre seu peito. O corpo do velho, no entanto, já não transmitia mais os
sinais.
Subitamente, ele compreendeu. Ao receber os toques
de uma palavra cujo significado não se formava, ele entrou em contato direto
com o gesto por trás do desenho, o fundo por trás da palavra. Acessava,
provavelmente, o que o filho definiria como a linguagem mais profunda do mundo.
O idioma que, liberto das cercanias das palavras, se define apenas por ele
mesmo e seus nomes impronunciáveis. Entendeu o que era “amor” e “passar”. Nos braços
do filho, vislumbrou suas últimas linhas da vida sendo desatadas com delicadeza
e sentiu que poderia estar se libertando para uma existência mais plena. Haveria,
ao contrário do que imaginara, um espírito em seu interior, pronto para o
Réveillon definitivo? Sentiu algo se esvaindo dentro de si; algo que era, com
certeza, a última pétala a cair de seu invólucro carnal. Uma lágrima se soltou
de seu olho.
A pequena gota foi a responsável pelo último contato
entre ele e o filho, que colou seu rosto ao dele. O jovem nunca vira o pai
chorar, e aquela manifestação foi o elo derradeiro e mais tocante entre os
dois; a compreensão mútua alcançada apenas no limiar da vida, por dois seres
humanos extremamente semelhantes. O corpo do velho entrou em silêncio interior
profundo e definitivo. Era o fim. Se pudesse ainda dizer alguma coisa,
provavelmente gesticularia para o filho que aquele momento era o melhor “passar”
de sua história; estava feliz que seu fim fosse esse. Provavelmente, o filho
pôde compreender parte de sua paz, o que era uma redenção para ambos. Uma
lágrima é mais útil a um homem do que uma alma.
GALLO, Rafael. Réveillon
e outros dias. Rio de Janeiro: Record, 2012.
Rafael Gallo,
nascido em São Paulo, é formado em música: composição e regência pela UNESP.
Compositor e produtor musical, tem realizado diversos trabalhos para TV, Cinema
e outras mídias. Atua também como professor universitário nas áreas de design
de som e trilha sonora para a produção audiovisual. “Réveillon e outros dias”,
seu primeiro livro, foi vencedor do Prêmio SESC de Literatura de 2012, na
categoria de contos. Lançou em 2015 seu primeiro romance, “Rebentar”.
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