Alfa - Marco Antonio Martire
Alfa
Assumir a relação era para ela um
problema. Acreditava em morar livre e só nesta parte do mundo, compartilhando a
rotina com um cachorro parceiro e amigo. Morava por aqui longe dos pais e do irmão.
Tinha família grande, tios e tias e primos, moravam longe também. Cuidava de um
carro novo, usava para trabalhar, só para o trabalho, gostava de ônibus e
metrô.
Passeava com o cachorro quando
conheceu o Vitor. Conversou com o rapaz primeiro por quinze minutos, na calçada
do meio de semana, o tráfego muito intenso, som de tráfego e canto de cigarras.
Não resistiu, ele pediu e ela aceitou sua amizade no facebook. Conversaram
muito online, à tarde e à noite e pela manhã. Descobriram preferências de um e
outro devagar, havia um clima de romance no ar, mas ela foi levando com calma.
Havia livros e séries de tevê, havia celulares e tablets, havia os amigos da
vida e da internet.
Vitor era sem dúvida seu amigo da
internet. Os dois brincavam muito pela rede, o cachorro dela junto da cama quando
ela dava risada. Começou a reencontrar Vitor pessoalmente na rua, por acaso repetiam
bastante o mesmo encontro da primeira vez, o passeio com os respectivos cães de
estimação. Ela com o macho e ele com uma fêmea. Sem timidez. O passeio era bonito.
Mas o tempo passou e a relação dos
dois não avançou, permaneceu a mesma. Quando questionada, ela respondeu que achava
aquela relação muito natural. Óbvio que pela internet se falassem mais, à
distância se entendiam melhor, ela estava na casa dela, deitada na cama dela. Não
podia simplesmente enfiar a cama no meio da rua.
Não é verdade que fosse dessas que se
trancam em casa, não era dessas. Tinha boas amigas, saía à noite, se divertia, ficava
com os carinhas, transava. Sempre em motéis, ainda que os lençóis não fossem os
da sua cama. Sua vida era de uma cordialidade branda: cumprimentava conhecidos
na rua, cumprimentava o porteiro. O porteiro já fizera inclusive serviços preciosos
em seu apartamento.
Mas Vitor fazia questão de ser um
problema.
Ela não sabia o quanto deveria ceder.
Já moravam no mesmo bairro, eram
vizinhos. Vitor precisava de muito mais que uma caminhada com os cães, precisava
ser homem também ao lado dela, certamente queria entrar na casa dela, estar na
cama dela. Era uma ideia que a aborrecia. Em sua casa tinha apenas um banheiro
e a ideia de compartilhá-lo com um homem não lhe agradava. Compartilhar a senha
de sua rede wi-fi também não. Compartilhar cozinha, compartilhar cama e tevê
também não.
Liberdade é um lance bom. Ela decidia
por si o que jantar, o que assistir na tevê, quando sair, que postagem curtir. Vitor
vinha e mandava nessa liberdade toda, precisava demais de muito, queria invadir
e conquistar o seu território. Ela decidiu dar uma chance ao rapaz. Deu para
ele. No apê dele, a cadela latindo horrores, foi uma loucura legal. Gastaram
umas semanas compartilhando aquele espaço, transaram muito naquele apê, o que a
fez acreditar que a relação tinha jeito.
Foi engano.
Ela sempre ia embora quando queria, o
cachorro a esperava em casa e Vitor bancava o chato, sempre reclamava. Precisava
que ela e o cachorro se mudassem para o seu apartamento. Precisava. Precisava. Ela
detestou a proposta, não desistiria de um lar que era tão seu. Nem por causa de
sexo bom entre quatro paredes.
Resolveu: parou de compartilhar. Parou
de compartilhar onde trepavam, parou de compartilhar o apê dele, parou enfim pelo
celular. Não respondeu a qualquer mensagem. Ele também parecia não estar mais tão
a fim. Talvez ela transasse mal.
Não se viram de novo. Pela internet se
estranharam em algumas postagens. Nada que rendesse um bloqueio. Ela passou a passear
com o cachorro em outra rua.
Conto escrito para o encontro de 13/ 10/ 2015
Marco Antonio Martire é carioca,
formado em Comunicação pela UFRJ. Já publicou os contos de “Capoeira angola
mandou chamar” e a novela “Cara preta no mato”, esta em ebook pela Saraiva.
Escreve crônicas para a Rubem (www.rubem.wordpress.com)
e resenhas para o Cabana do Leitor (www.cabanadoleitor.com.br).
É fã do Clube da Leitura.
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