Gran finale - Beatriz Moreira Lima
Gran finale
O
Mário era um sujeito muito boa praça. Aliás, empenhou-se a vida inteira para
ser assim considerado. Desde a época da escola, preocupava-se com sua
popularidade. Doía-lhe a alma saber que alguém não gostava dele, ainda que ele
mesmo não tivesse esse alguém em alta conta... Então, fazia de um tudo para ser
querido. E, como já era, por natureza, amável, com o esforço extra, era
bastante popular.
Bom
de papo, tinha assunto para conversar tanto com a avó do colega de trabalho,
quanto com o cunhado da esposa. Sabia, como ninguém, evitar atritos. Ouvia as
opiniões políticas mais diversas, sem jamais discordar. Fazia comentários
pertinentes, que podiam ser interpretados pelo interlocutor como melhor lhe
conviesse. Sempre demonstrava interesse no trabalho, na família, nas conquistas
e nas doenças de todos. Não negava favores aos amigos e até aos amigos dos
amigos. De uma carona a um dinheiro emprestado, o Mário era “o cara”.
E
como conhecia gente! Era quase impossível entrar num restaurante onde não
conhecesse alguém. Na rua, também não andava mais do que alguns quarteirões sem
parar para cumprimentar um amigo. Aliás, Mário jamais fingia não ter visto um
conhecido porque estava com pressa. Não, sempre parava para conversar e fazia a
pessoa sentir que o encontro tinha sido um grande prazer para ele. No telefone,
nunca tomava a iniciativa de desligar, pois poderia parecer rude. Sempre
atendia ao celular e não avisava ao interlocutor que estava jantando ou
dirigindo, para não constrangê-lo ou apressá-lo. Enfrentava, com galhardia, as
obrigações sociais mais detestáveis. De batizados e festinhas infantis a
velórios e missas de sétimo dia, passando por formaturas e casamentos, Mário
não inventava desculpas: fazia-se presente, alegre ou triste, conforme
demandasse a ocasião.
Em
seu íntimo, sabia que toda a atenção que dispensava às pessoas lhe seria
retribuída. E tinha razão. No seu aniversário, não fazia festas: temia não ter
condições de convidar todo mundo ou esquecer alguém. No entanto, várias vezes
foi surpreendido por comemorações organizadas por amigos e colegas de trabalho.
Era verdadeiramente querido.
Quando
adoeceu, chegou algumas vezes a desejar que não fosse tão popular. Afinal,
estava fraco para receber tantas visitas e telefonemas. Mas, no fundo,
confortava-o a imagem do cemitério repleto no dia de seu enterro. Envaidecia-se
pensando que seu velório faria transbordar a capela 1 do São João Batista e que
o cortejo inundaria as vielas de pessoas das mais diversas origens. Parentes,
colegas de escola, a turma da Rua Miguel Lemos, a galera da faculdade, da
praia, do primeiro estágio, do futebol de domingo, da academia, o pessoal do
escritório, o português da padaria, o dono da banca de jornal, seus clientes,
os amigos dos filhos, todos os amigos cultivados ao longo de tantas décadas de
vida. Haveria muitas coroas de flores e homenagens. Talvez até um discurso ou
outro. Não fazia questão de lágrimas. Queria apenas, na hora da partida, ser
lembrado por todos como o querido Mário, amigo de fé, irmão, camarada... Seria seu
gran finale.
Foi
uma pena o que aconteceu com o Mário... Imaginava que seria sepultado no jazigo
da família de sua mãe, no cemitério São João Batista, no bairro de Botafogo,
Zona Sul do Rio de Janeiro. No entanto, uma semana antes dele, faleceu sua irmã,
Irene, num acidente de motocicleta, aos 65 anos de idade, deixando uma filha e
dois netos. Não houve tempo para preparativos ou maiores questionamentos. Mário
sequer foi consultado, já que a família julgou desnecessário e até cruel
submetê-lo à notícia do repentino e intempestivo falecimento da irmã querida,
quando estava ele mesmo em seus últimos dias de vida, sob forte sedação. Irene
foi enterrada no jazigo do São João Batista, na quinta-feira, dia 04 de agosto
de 2011. Na quarta-feira seguinte, dia 10.08.2011, morreu Mário. Fazia um calor
incomum para aquela época do ano. No pouco tempo que tiveram para se organizar,
a mulher e os filhos de Mário trataram de providenciar o rápido traslado do
corpo para Volta Redonda, cidade natal da família de seu pai, que possuía um
belo jazigo no cemitério local.
Mário
nunca compartilhara com sua esposa as fantasias a respeito de seu próprio
funeral, de forma que não lhe passaria pela cabeça que estaria contrariando os
desejos do marido ao enterrá-lo junto à sua avó mais amada, que ajudara a
criá-lo desde pequeno e da qual sempre falava com grande carinho. Jamais
poderia imaginar a frustração de Mário, pairando sobre o minguado cortejo que
acompanhava seu corpo terreno para a despedida final. Parecia haver mais coroas
de flores do que pessoas. Estavam lá a mulher, os filhos e alguns amigos mais
chegados. Um colega de trabalho até alugara uma van para levar o pessoal do
escritório. Mas, em plena quinta-feira, eram poucos os que podiam se dar ao
luxo de perder uma dia inteiro de trabalho para ir a um enterro em Volta
Redonda. Ainda que de Mário, grande sujeito, boa praça, sangue bom... Da
próxima vez, optaria pela cremação, pensou, resignado, enquanto observava o
pequeno grupo afastar-se, compungido e sereno, em direção aos veículos
estacionados junto ao portão de entrada.
Conto
escrito para o encontro de 29/ 09/ 2015
Beatriz Moreira Lima nasceu em 1970, é funcionária
pública, mas sempre gostou de escrever. Teve um filho em 1998, publicou um
livro em 2008 (“Tempos Férteis”, editora 7 Letras) e até 2018 pretende plantar
uma árvore para completar a sua minibiografia. Enquanto isso, frequenta o Clube
da Leitura.
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