Que tudo se realize - Daniel Russell Ribas
Que tudo se realize
Enquanto contemplava o oceano líquido e o de pessoas
se confundirem muitos andares abaixo, Armando decidiu que seu desejo de
réveillon era que o impacto de seu corpo com o chão fosse forte o suficiente
para lhe proporcionar uma morte rápida e indolor.
Na cobertura, insuspeita, a jovem Isabela, que, por
sugestões de sua mãe (tornadas cada vez mais frequentes à medida que a noite e
o álcool avançavam em seu sistema) de que fizesse um pedido, olhou para o céu
estrelado, suspirou e, num pensamento tão íntimo que a própria menina de 5 anos
duvidou que tivesse ocorrido, quis que seu tio parasse de colocar os dedos
dentro de sua calcinha e que ele cumprisse a promessa de trazer a tal boneca, o
motivo por que aceitara participar desta brincadeira desagradável em primeiro
lugar. Os dedos do tio eram grossos e ossudos e machucavam. Fez um terceiro
pedido, que os dedos do tio caíssem. Os primeiros minutos do novo ano a
convenceriam de que fora tão silenciosa em seu pensamento que o responsável
pelo atendimento dos pedidos não teria escutado. Também, com o barulhão daquele
pessoal todo na praia e no apartamento...
No sétimo andar, Otávio queria que sua namorada
gozasse assim que os fogos estourassem. Seria romântico e inesquecível. Saia
com Michelle há algum tempo e gostavam da companhia um do outro. Eram dois
jovens recém-formados de 20 e poucos anos, com emprego, projetos, barzinho,
animais, netflix, jogo de futebol com amigos, saída para beber com amigas,
viagem uma vez ao ano (“ano que vem, vamos para Barcelona.”), churrasco,
masturbação, secretária do lar uma vez por semana, ... Praticamente tudo no
lugar, exceto que ele nunca a fez gozar. Tentou diversas posições, oral, anal,
movimentos, ritmos na penetração, sacanagens, óleos, objetos para auxílio, dor,
mais dor, romantismo, livros, conversas, a 3, a 4, a mais, a menos, terapia...
E nada. Sabia que Michelle o largaria se a fizesse gozar, porque mulher é assim.
Se não é bem comida, e o cara não é herdeiro, dá um pé na bunda. Há muitos
pecados que um homem pode cometer a uma mulher: trair, bater, humilhar, calar,
quebrar, exceto um. Se fosse milionário ou alguém com carisma acima do usual,
talvez ela arrumasse um amante e ficariam juntos. Mas Otávio era um jovem
branco de classe média em começo de carreira, uma espécie que se encontra em
qualquer festa com a mesma facilidade de uísque falsificado. Ela gozaria
naquela noite, Osvaldo determinou. Tomou mais de um comprimido para se
certificar. Nos primeiros minutos de janeiro, ele a ouviria gritar de prazer e
garantiria sua posse. Em troca, doaria
umas camisas velhas para uma igreja que abrigava refugiados. Justo.
No elevador, que parava a cada andar apesar do aviso
do síndico para evitar a superlotação do espaço (devidamente ignorado), tudo o
que Magda queria era fazer xixi.
Enquanto aguardava que o elevador chegasse (e não
viesse cheio de gente), Tiago planejava o enredo de seu primeiro livro. Seria
um comentário mordaz sobre a mercantilização dos relacionamentos modernos,
usando as redes sociais como pano de fundo. Mas já tinha sido feito antes...
Sabia, inseriria reflexões de filósofos contemporâneos e quebraria a estrutura
de modo a estabelecer um antiparadigma semiológico. Entretanto, soava
intelectual demais, hermético. Pronto! Incluiria erotismo na trama. Descreveria
de forma explícita as relações sexuais, com direito a cada ato e fantasia, pau
na boceta, pau no cu, boceta na boceta, pau no pau, boceta no cu e por aí vai. 50
tons de Bauman. Aí seus amigos do pós-doutorado o chamariam de vendido e a
banca não consideraria seus projetos com seriedade. Largou tudo de lado e
repensou aquela história infantil sobre uma menina e gato, inspirado em sua
filha com o animal de estimação. Sorriu ao aventar as possibilidades narrativas
e comerciais. Sequer se lembrou de apertar o botão para chamar o elevador, que
passou direto e cheio de gente.
Atrás de uma porta, um jovem surdo-mudo chorava a
morte de seu pai, enquanto desejava que ele tivesse compreendido o que
significava “amor”.
Em pleno calçadão, do lado de fora do prédio, um
mendigo tropeçava. Todo dia, por todo ano, este mendigo (que já teve nome, mas
isto se passou a tanto que é quase como se nunca tivesse existido este tempo)
passava em frente a este edifício, embriagado de qualquer bebida que pudesse
tomar. Apesar da fome, das constantes ameaças e abuso dos outros, mantinha-se
otimista. Sempre conseguia trocado para uma branquinha no botequim. E quando
tomava, ah, sentia o coração bater forte! Exceto, por ironia, naquela noite
final. Havia bebida por todos os lados, mas ninguém disposto a lhe dar uma
moeda ou um gole. Sóbrio, notou que, por trás dos sorrisos, escondia-se algo
terrível, egoísta e desolador sobre a raça humana. Toda alegria era fútil, pois
passageira, como um espetáculo de luzes que some no ar em seguida. Somente a
crueldade era constante. Não lembrava seu próprio nome. Quis que sua vida
acabasse logo. Assim que os fogos estouraram, olhou para cima a tempo de ver
seu desejo ser realizado.
Conto escrito para o encontro de 29/ 09/ 2015
Daniel Russell Ribas é membro do “Clube da Leitura”
(http://clubedaleiturarj.blogspot.com.br), que organiza evento quinzenal.
Escreve no blogue “Entre a rua e o meio fio” (http://multiconto.blogspot.com.br/),
em parceria com o poeta Henrique Santos. Organizou as coletâneas “Para
Copacabana, com amor” (Ed. Oito e meio), “A polêmica vida do amor” e “É assim
que o mundo acaba”, ambos em parceira com Flávia Iriarte e publicados pela Oito
e meio, e “Monstros Gigantes – Kaijus”, em parceria com Luiz Felipe Vasquez,
pela Editora Draco. Participou como autor dos livros “Clube da Leitura: modo de
usar, vol. 1”, “Lama, antologia 1” (publicação independente), “Clube da
Leitura, volume II”, “Sinistro! 3”, “Ponto G” (Multifoco), “Caneta, Lente &
Pincel” (Ed. Flaneur), “Clube da Leitura, vol. III”, “Veredas: panorama do
conto contemporâneo brasileiro” e “Encontros na Estação” (Oito e meio).
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