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Mostrando postagens de março, 2015

A parte real e a parte imaginária - Francisco Ohana

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A parte real e a parte imaginária Ao contrário do que muitos pensam, a matemática pura não é o país da solidão. Ela é um conjunto de ilhas entre as quais é preciso navegar. Mas, para navegar, são necessários instrumentos, tanto físicos – bússola, astrolábio, mastros – quanto psicológicos – capacidade de improvisação, inteligência e resistência ao isolamento. Foi isso o que disse o professor no primeiro dia de aula. Era maranhense, de baixa estatura, franzino e arredio. Distribuía folhas que ele mesmo digitava, contendo exercícios sobre números complexos, geometria analítica e trigonometria, movendo-se rapidamente entre as carteiras dos alunos e dizendo uma ou outra palavra introdutória sobre a matéria com sua voz anasalada e forte sotaque nordestino. No fim da manhã, foi abordado por um aluno com dúvidas na matéria, que acabaram por se revelar dificuldades de base. Agendaram um encontro naquela tarde para dirimir as dúvidas. As aulas de reforço particular estenderam-se até

Mote do encontro 07/04

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Texto lido por Márcio Couto De Profundis     “Sou muito mais individualista hoje do que jamais fui. Nada me parece ser do menor valor, exceto aquilo que a pessoa extrai de si mesma. Minha natureza está buscando um novo modo de autorealização. E é só com isso que me preocupo. E a primeira coisa que tenho de fazer é me libertar de qualque possível sentimento de amargura contra o mundo. Estou sem um tostão, e não tenho onde morar. Mas na vida há coisas piores que isso. Sou absolutamente franco quando digo que, a sair desta prisão com amargura contra o mundo e meu coração, preferiria mil vezes mendigar meu pão de porta em porta. Se não conseguisse nada na casa do rico eu conseguiria na do pobre. Os que têm muito são em geral gananciosos; quem tem pouco sempre compartilha. Não me importaria nem um pouco de dormir na relva fresca e, quando o inverno chegasse, buscar abrigo junto à acolhedora meda de feno colmada, ou sob a cobertura de um grande celeiro, contanto que tives

O desaparecimento de Beto - Patrícia Santana

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O desaparecimento de Beto Era uma tarde de 1977 quando Beto conseguiu ver claramente o que devia fazer. Parecia que alguma divindade tinha sentido pena do seu sofrimento e decidido mostrar-lhe a saída, o caminho a ser trilhado, os passos a serem dados, de forma tão detalhada quanto num manual de instruções. Ele estava no jardim de casa, vendo o seu filho de sete anos brincar e fingir inocência e ternura. Beto não conseguia entender como todo mundo amava incondicionalmente os filhos. Ele não suportava o seu!!! Aliás, Beto não suportava ninguém, desde sempre. Vivia numa estado mental de indignação constante. Na escola ficava revoltado com a petulância da professora que se achava a fonte de todo o saber, com o comportamento demasiadamente infantil dos seus coleguinhas de oito anos e com a feminilidade exacerbada das coleguinhas que criavam histórias sem originalidade ou plausibilidade com suas bonecas mal vestidas. A indignação com tudo e com todos perdurou, e a sua adolescên

Mote do encontro 24/03/15

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Texto lido por Thiago Mourão O feitiço da ilha do Pavão     Ah, quem estava distraído nessa hora afirma que a tarde se iluminou de rosa carmim, o ar se perfumou e toda orla da ilha do pavão faiscou. Não se sabe se isso é verdade, mas parece que sim, porque passaram um tempo infinito um dentro do outro e gozaram como ninguém nunca gozou neste mundo, atravessando a longa noite abraçados e amantes, nada de ruim podendo alcançá-los. De noite, se os ventos invernais estão açulando as ondas, as estrelas se extinguem, a Lua deixa de existir e o horizonte se encafua para sempre no ventre do negrume, as escarpas da ilha do pavão por vezes assomam à proa das embarcações como uma aparição formidável, da qual não se conhece navegante que não haja fugido, dela passando a abrigar a mais acovardada das memórias. Logo que deparadas, essas falésias abrem redemoinhos por seus entrefolhos, que nada é capaz de resistir. Mas, antes, lá no alto, um pavão colossal acende sua cauda