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Mostrando postagens de janeiro, 2016

A regra - Daniel Russell Ribas

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A regra Ela sempre foi clara e inviolável. Nunca mijar fora do vaso. “Isto é nojento!”, esbravejava. Então, com toda boa vontade, mirava na água. Ainda assim, acidentes ocorriam. E a quantidade não importava. Apenas uma gota era o necessário para a tempestade vir. “Porra! Tenho cara de doméstica? Gosto da casa limpa, tudo arrumado no seu lugar, aí você chega e emporcalha tudo!” A porrada comia, esta parecia ser a regra real. Tudo no seu lugar, bem ajustado: gota fora, cacete adentro.  Anos e a regra, que não era dita, era tão clara quanto aquele xixi depois de beber muita água. Uma noite, cheguei bêbado. Tava puto e tomei todas. Da branquinha, desceu bem e queimando. “Porra, tá fedendo a cachaça!”, escutava na cabeça num contínuo monótono e agudo. Encarei a privada e saquei minha pistola, como um caubói de faroeste italiano. E girei o bicho em alta velocidade. Mijei a porra do banheiro todo. Gargalhei alto, como um cientista louco. Ela chegou à porta, de boca

Recordar - André Salviano

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Recordar Minha memória é baú velho, empoeirado. Às vezes dá vontade de abrir e brincar com o que tem dentro, noutras apenas o esqueço em um dos cantos da casa por dias, meses. Minha avó dizia pra eu só voltar ao passado se necessário, era uma mulher pragmática, que tanto me ensinou. Às vezes é preciso abrir a tampa para enfiar algumas coisas lá dentro, e nessas horas, mesmo que eu queira recordar, evito remexer no que já lá está. Foram tantas as dores na infância: de dente, ouvido, queimaduras, ralados, da solidão, o medo do escuro. Voltar nunca é tão bom, voltar é complicado, ainda mais agora, mas também é, como diz o mestre Paulinho da Viola, quase sempre partir para um outro lugar. E de que lugar eu falo agora? Será que tudo que se acumulou nesse baú ao longo dos anos me define, ou tenha me formado? Eu falo pra mim? Pra quem já me deixou? Pra algum dos espelhos que se espalham por onde passo e me reflete? As dores de cabeça eram curadas com rodelas de batatas inglesas, que

Nascimento - Walter Macedo Filho

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Nascimento Assustei quando minha tia perguntou o que eu fazia sentada com as duas mãos entre as coxas, as palmas abertas e viradas para fora a massagear minhas virilhas num vai-e-vem automático, desce-e-sobe ritmado. Não era eu. Era meu corpo. A imagem congelou: ele tirava a camisa, o cinto frouxo fez a calça escorregar parando em diagonal, abaixo da cintura. O que eu não via, imaginava. − Saia daí. Deixe seu pai terminar de se arrumar. De uma só vez descobri o desejo, o pecado e a culpa. Eu faria 12 anos dali a três meses. Ele olhou para o canto onde eu estava e lançou uma piscadela para mim. Nunca mais me foi possível ver o torso despido de um homem sem que aquela imagem viesse em relâmpago à minha cabeça. No começo eu tentava reprimir de qualquer forma, fosse negando, fosse desfazendo relacionamentos que ainda estariam para se formar só porque tinham alguma relação com o que vi naquele momento. Passados os anos, cedi. Na primeira semana que parei de resisti

Colher de chá colher de sopa - Fernando Andrade

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Colher de chá colher de sopa Uma colher de sopa. Uma colher de chá. Entre elas uma xícara. Mãe e Pai duas colherinhas de azedume. Ali no ressonar das 10 da noite, boa, era só se eu e Manu se escovássemos os dentes. Era o critério das fadas, era o período dos mitos, uma correia serve à calça, mas também à corsa. E a correria por volta da mesa buscando uma colher de chá, vamos Manu às brincadeiras? Colher de pau esperando na sala de estar. Onomatopeia AU saindo da boca de nós duas. Chá de espera, pai pedindo, mãe suplicando, Manu no vaso fazendo plantas da casa. Arquiteta essa Manu! A sopa está vindo, e os sopapos vem atrás, A borda da cama, lugar do repique, A rebarba de mais um tempinho, a rebordosa do conhaque do pai, afetuoso este progenitor quando toma este seu pileque. Dia redivivo, escola tortuosa. É dia de sábado ou domingo? Ler um pouco debaixo das cobertas, a ausência da presença do rosto da mãe, a palavra do pai numa oração substantivada. A quadratura dos tacos, a

Fatal Rendezvouz & consequência - Márcio Couto

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Fatal Rendezvouz & consequência Deram-me o nome de Euríale, nome de medusa, aquela que vive ao largo, que ao largo se embriaga, ao centro se atravessa, residindo na fronteira de si, evitando a córnea de oblívio onde um dia se extinguirá, e Euríale sou desde então, perdida no outono de meus pesadelos, e desregrada envergonhei mamãe, quem se chamava Atena, quem achou engraçado dar à filha o nome da terceira das górgonas, cuja beleza a deusa da sabedoria amaldiçoou por não suportar a enorme semelhança que partilhavam, e mamãe me detestava por minha curiosidade de cortesã, e me limpava a baba de creme de abóbora por obrigação, vendia as roupas do corpo por fraldas não por amor mas porque via em minhas pernas borradas de merda o crime pelo qual jamais receberia indulto, quando me enlaçava os cachos e me despejava cânfora na nuca não era para me ver livre da febre e ranho mas para sentir-se no controle de algo, tornei-me livre assim que soube como amarrar os sapatos, como desli