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Mostrando postagens de novembro, 2016

Diálogo, por Caio Fernando Abreu

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(mote para o encontro de 06/12/2016) Diálogo A: Você é meu companheiro. B: Hein? A: Você é meu companheiro, eu disse B: O quê? A: Eu disse que você é meu companheiro. B: O que é que você quer dizer com isso? A: Eu quero dizer que você é meu companheiro, Só isso. B: Tem alguma coisa atrás, eu sinto. A: Não. Não tem nada. Deixa de ser paranóico. B: Não é disso que estou falando. A: Você está falando do quê, então? B: Estou falando disso que você falou agora. A: Ah, sei. Que eu sou teu companheiro. B: Não, não foi assim: que eu sou teu companheiro. A: Você também sente? B: O quê? A: Que você é meu companheiro? B: Não me confunda. Tem alguma coisa atrás, eu sei. A: Atrás do companheiro? B: È. A: Não. B: Você não sente? A: Que você é meu companheiro? Sinto, sim. Claro que eu sinto. E você, não? B: Não. Não é isso. Não é assim. A: Você não quer que seja isso assim? B: Não é que eu não

Colo de Mãe, por Beatriz Moreira Lima

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Quando puseram o bebê em seus braços, sentiu um misto de alívio e pânico. Finalmente, aquela criatura tinha saído de dentro dela; aquele alienígena que se instalara, contra a sua vontade, no seu ventre, fora expulso. Foram horas de um sofrimento excruciante, mas valera a pena. Só que agora o ser sanguinolento estava sobre seu peito e a plateia parecia esperar uma demonstração de amor materno. O tal amor incondicional. Não sentiu nada, apenas um pouco de repulsa por causa do sangue que ainda envolvia o recém-nascido. Chorou. Primeiro, timidamente; depois, aos soluços. A enfermeira tirou o bebê de seu colo, com ar de reprovação. Aleluia! Agora precisava planejar a sua fuga.  Lucienny fugiu de madrugada. Sua mãe dormia em uma cadeira ao lado de sua cama, na enfermaria da maternidade. Nos outros leitos, três mulheres também dormiam, enquanto uma quarta gemia sem parar. Encontrou com facilidade suas roupas na sacola pendurada ao pé da cama. Foi um pouco mais difícil pegar o dinheiro da m

Minha Mãe, por Victor Giudice

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"─ Uma vez você me disse que tia Adelaide e você eram duas bobas. Só você é que foi boba. Que é que pensa que ganhou, se trancando num quarto, com os olhos fechados para a vida? Se lembra quando você mandava eu rezar e dizia que rezava a noite inteira? Eu nunca rezei nem uma ave-maria sequer. Agora eu sei que é tudo mentira da grossa, já sei da missa a metade, que a única verdade é o prazer. Mamãe, eu sou uma pecadora, está ouvindo? Sua filha é uma pecadora. Nenhuma resposta. No final do corredor, tia Adelaide arregalava os olhos para mim, com as mãos postas, como se implorasse o silêncio de Deus. Quanto mais ela suplicava, mais eu gritava. Mas não obtive resposta. De repente, eu encontrei a força que havia buscado por toda a vida e agarrei a maçaneta da porta de minha mãe com as duas mãos. A garganta de tia Adelaide desprendeu um não lancinante de tragédia grega e ela tentou me impedir com os mesmos dedos que se entrelaçavam aos meus. Não conseguiu. Quando a maçaneta girou, ela c

O triunfo da cor, por Carmen Belmont

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O triunfo da cor, por Carmen Belmont Ele era magro e tinha uma cabeleira ruiva, o que lhe valia mil apelidos na escola. Cabeça de fósforo. Cenourinha. Labareda. Curupira. Diabo-da-tasmânia. Salsicha. Como ninguém jamais levantou o assunto bullying , ficou apenas o registro na memória de algumas brincadeiras bobas de criança, sem maiores traumas. A juba vermelha só chegou a incomodar um pouco porque não podia participar de nenhuma bagunça sem ser pego, pois era sempre o primeiro de quem os inspetores e professores se lembravam. Quem mandou ter uma característica tão facilmente identificável como aquela? Se bem que era calmo – apesar da inquietude interna que o fazia tamborilar em qualquer coisa, de paredes a cadernos – e não costumava se meter em encrencas. Pelo menos não em encrencas desse tipo. A verdade é que ir à escola não lhe interessava muito, a não ser pela possibilidade de zoar com os amigos nos intervalos das aulas. Passava a maior parte do tempo calado e sonolento, ou