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Mostrando postagens de abril, 2017

O Banho, de Raduan Nassar

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O BANHO Debaixo do chuveiro eu deixava suas mãos escorregarem pelo meu corpo, e suas mãos eram inesgotáveis, e corriam perscrutadoras com muita espuma, e elas iam e vinham incansavelmente, e nossos corpos molhados vez e outra se colavam pr’elas me alcançarem as costas num abraço, e eu achava gostoso todo esse movimento dúbio e sinuoso, me provocando súbitos e recônditos solavancos, e vendo que aquelas mãos já me devassavam as regiões mais obscuras — vasculhando inclusive os fiapos que acompanham a emenda mal cosida das virilhas (sopesando sorrateiras a trouxa ensaboada do meu sexo) — eu disse “me lave a cabeça, eu tenho pressa disso”, e então, me tirando do foco da ducha, suas mãos logo penetraram pelos meus cabelos, friccionando com firmeza os dedos, riscando meu couro com as unhas, me raspando a nuca dum jeito que me deixava maluco na medula, mas eu não dizia nada e só ficava sentindo a espuma crescendo fofa lá no alto até que desabasse com espalhafato pela cara, me alfinetando

O Deus da Carnificina, de Yasmina Rezza

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ANNETTE                    Vocês têm outros filhos? VERÔNICA                  O Bruno tem uma irmã de nove anos, a Camila. Que está zangada com o pai dela porque ele se livrou do hamster ontem à noite ANNETTE                             Se livrou do hamster? MICHEL                       Me livrei. Hamsters fazem um barulho medonho à noite. São seres que dormem de dia. O Bruno não aguentava mais, estava ficando maluco com o barulho que o hamster fazia. Para dizer a verdade, há muito tempo que eu tinha vontade de me livrar dele, aí eu pensei: não, agora chega, então eu o peguei e coloquei na rua. Eu achava que esses animais gostavam das sarjetas, dos esgotos, nada disso, ele ficou petrificado na calçada. Na verdade, não são nem animais domésticos, nem animais selvagens, não sei qual é o meio natural deles. Se forem largados numa clareira, eles também ficam tristes. Não sei onde podem ser colocados. ANNETTE                             Deixou o pobrezinho lá fora

Caderno de um ausente, de João Carrascoza (vídeo)

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“A tua história, Bia, é o bem mais precioso que tens, ainda que não venha a ser grandiosa, é a tua história que te dará a medida de estar no mundo, ela é que exorbita ou reduz o teu valor perante ti mesma e perante a misteriosa avaliação dos outros ___ não há como te esterilizar do passado (que veio de mim e de tua mãe e já se aderiu ao teu espírito feito solda), qualquer história, enquanto se desdobra, é um reino de possibilidades, uma história, quando a escrevemos, delineia aquilo que poderia ser, nunca o que foi nem o que é, porque a memória (o passado) só se revigora se a formulamos de novo (no presente), retocando a luz de sua trama com o grafite das trevas, a tua história, Bia, há de ser mais uma cicatriz que se somará a outras nas páginas de rosto da nossa família, e eu te louvo, filha, por aqui estar, fio de água, no broto de tua nascente, pra cumprir o teu curso, e eu te peço perdão, outra vez, por não poder te poupar das chagas que te esperam lá na frente, nem ter o ungue