Postagens

Mostrando postagens de junho, 2017

O Apocalipse dos Trabalhadores, de valter hugo mãe

Imagem
o corpo do senhor ferreira já havia seguido para a morgue, e já havia sido limpa a rua do seu sangue para não continuar chocando os vizinhos. logo mais estariam as crianças passando para as escolas e era mesmo a tempo de se pôr tudo como se nada tivesse sido, para não assustar os pequenos e pacificar o povo de bragança. a maria da graça sentou-se na sala, colocou as mãos no colo sem lhes ter o que fazer. o portugal permaneceu ainda quieto, a cabeça entre as patas e o olhar como cabisbaixo. ela esperou uns minutos até que tivessem tempo para conversas. não percebeu o olhar em redor da agente quental. não percebeu imediatamente quem seria a agente quental. estavam duas mulheres no lugar, nenhuma lhe dissera palavra. quem lhe falasse, julgava,começaria por lamentar a perda. pensava que estariam ali para reconhecer o seu direito à viuvez daquele homem. bateu a mão numa perna e foi como o cão correu e se lhe enrolou no colo. ela ficou com as mãos penteando-lhe o pelo. a agente quental pergu

João da Rua, por Guilherme Preger

Imagem
Minha vida era boa, até o dia em que veio o Golpe. E com o Golpe, veio minha demissão. E com a demissão eu fui para a rua. Por isso decidi me recolher a um canto na rua Paulo Barreto em Botafogo, onde morava anteriormente, vivendo de aluguel num apartamento de quitinete. Decidi levar comigo um saco com apenas duas mudas de roupa e mais uma mala repleta de livros. Decidi me estabelecer justamente na calçada junto ao muro que delimitava a garagem de meu antigo prédio, abaixo de uma marquise que me protegia da chuva. O espaço era aconchegante, razoavelmente limpo e tinha mais ou menos a dimensão de metade de meu apartamento anterior. Achei que seria um lugar apropriado, pois sempre fui amigo do porteiro, seu Pereira, e do servente, o Gerson, trabalhadores desse meu antigo prédio, bem como do Alcides, que era uma espécie de “faz-tudo” do condomínio, tendo trabalhado em minha casa várias vezes. Em minha vida de bonança, de trabalhador de carteira assinada, sempre fui generoso e os ajudava

Por um bife, de Jack London

Imagem
Ele era um veterano e o mundo não se dava bem com veteranos. Ele não era bom para nada, a não ser parar biscates, e o nariz quebrado e a orelha inchada não lhe ajudavam nem para isso. Ele se viu desejando que tivesse aprendido algum ofício. Teria sido melhor a longo prazo. Mas ninguém havia lhe dito isso, e ele sabia, bem no fundo do coração, que não teria ouvido se o tivessem.  Tinho sido tão fácil. Dinheiro de sobra, lutas intensas e gloriosas, períodos de descanso e vagabundagem entre elas, um séquito de ávidos puxa-sacos, os tapas nas costas, os cumprimentos, os figurões contentes em lhe pagar um drinque pelo privilégio de uma conversa de cinco minutos, e a glória da luta, os ginásios gritando, o turbilhão dos golpes finais, os juízes “King é o vencedor!” e o seu nome nas colunas de esporte no dia seguinte.             Aqueles tinham sido dias e tanto! Mas ele se dava conta agora, do seu jeito lento e reflexivo, que eram os veteranos que ele estava derrubando. Ele era a Juventud

Corredor Polonês, por Eduardo Villela

Imagem
Sentada no banquinho, Daniele olha as nuvens ao lado e abaixo. Os querubins em torno não chegam a incomodar, quase fazem um pouco de cócegas. Com a rapidez que lhes é característica, checam boca, nariz, pernas e braços, cabelos protetores; um se detém mais em seu rosto, olhando-a fixamente. Este é um anjo superior, milhares de anos à frente dos demais. Os outros se ocupam em observar se ela enxerga bem, se pode ouvir qualquer ameaça, identificar algo nocivo pelo cheiro, sentir gosto estranho, sentir dor. Eles nada dizem, mas parecem em conjunto mostrar a ela que nada será simples dali pra frente. Aí é que entra a importância do querubim mais evoluído, a testar sua percepção e raciocínio, inteligência e bom senso. Sabe que ela passará por momentos difíceis, desafiadores, que exigirão todos os seus sentidos e capacidades que aqui não têm uso. Daniele tem um pouco de medo, e o tal anjo então sorri, pois é justamente essa faculdade que ele quer testar agora. É um anjo só cuida de coisas

Conversa, por Gabriel Cerqueira

Imagem
Fevereiro de 1902, em São José do Barreiro - São Paulo Felipe Azevedo andava de um lado para o outro na cozinha do casarão da Fazenda Santo Eustáquio. Ele esperava por Carlos Fagundes, um conhecido de infância a quem iria propor a venda da Fazenda São Francisco. Já tinha em mente tudo o que iria dizer e como agir, e estava confiante mesmo diante do desafio que estava por vir. Sentou em uma das cadeiras postas a uma longa mesa de mogno e bebeu um pouco do café que Dona Maria havia passado. Um burburinho se iniciou fora do casarão seguido. Fagundes entrou na cozinha. O rosto jovem, a pele bronzeada, bigode e barba finos, o cabelo ondulado e o corpo esbelto; parecia mais um peão bem cuidado que senhor de fazenda. Colocou o chapéu em cima da mesa e sentou-se em uma das cadeiras. Fagundes não era uma pessoa fácil de lidar, isso Felipe sabia desde criança. Homem de poucas palavras e senso forte, o arquétipo de homem mal-encarado envolveu Carlos e a simples pronúncia de seu