Beije-me antes de partir, por Gabriel Cerqueira


Em um bar barato em Lincoln Park, Chicago, numa noite chuvosa de quarta-feira.

A conversa foi interrompida pela chegada de um homem sorridente e olhar gentil. Era Johnnie, um produtor musical que havia ganhado certa fama por causa de algumas boas apostas em cantores de rua. Nos conhecemos ainda na universidade. Não éramos próximos, transamos algumas vezes, mas pela boca dos outros ele conheceu até meu passado pelas noites de Detroit. At Detroit they don’t have any mercy. They just want your pussy. Na última vez em que nos vimos ele disse que arranjaria algum modo de ganhar dinheiro e voltaria para me buscar. Não acreditei em nenhuma palavra dele. Só que Johnnie voltou, o motivo ninguém sabe. Bebo um gole de cerveja e dou um trago no cigarro.
Motivos à parte, Johnnie está em cima de mim na minha cama. Como as intenções sobre meu corpo sempre são de segunda nunca neguei uma boa foda. Ele começou por cima, beijando meu pescoço e seios, demorou-se nos mamilos rijos, me lambeu até quase eu gozar e então entrar em mim.
A fumaça de dois cigarros preencheu o ar do quarto escuro. Deitei sobre o peito de Johnnie e ficamos calados, apreciando o gosto do tabaco e o silêncio da noite.
– Quero saber se quer ir comigo – ele disse calmo e de repente.
– Não pensei que fosse cumprir sua promessa de príncipe num cavalo branco.
Peter, um amigo que tínhamos em comum, deve ter contado que pretendo sair de Chicago. Não tenho nada aqui além de um emprego miserável em uma loja de departamentos. Minha família já se foi, os amigos vêm e vão. Johnnie disse que poderia me arrumar um trabalho decente na Califórnia com um de seus amigos e que, se quisesse, poderia morar com ele. Será que estava apaixonado por mim desde a faculdade? Como esse não era o primeiro acordo que fiz por sexo, resolvi aceitar a proposta.
Já coloquei quase tudo o que tenho em caixas – minha vida inteira coube em cinco delas – e faltam apenas algumas roupas, sapatos e o diploma da Detroit Mercy University pendurado na parede. Pego e olho meu nome escrito com uma caligrafia desenhada. Nada do que fiz por ele valeu a pena. O sonho universitário é gerado num útero de esperança com um bom discurso institucional, só para depois te parirem na sarjeta.
Duas semanas depois já estávamos em São Francisco. Por enquanto estou morando com Johnnie para poupar alguns trocados. Arranjei um estágio em uma agência de advocacia pela primeira vez. Tudo está indo muito bem, inclusive as coisas com Johnnie. Acho que me apaixonei pelo sujeito, algo inédito para uma criatura destrutiva como eu.
Sempre busquei meu fim. Nunca amei ninguém e as transas sempre tinham outro objetivo além do prazer. A bebida e as drogas se tornaram um alento contra o vazio crescente em meu peito. Outro dia numa conversa um amigo disse que nunca pensou em se matar e me assustei; e existia essa alternativa, simplesmente nem pensar em tirar a própria vida? Mas quando estava com Johnnie a existência que me era pesada soava branda.
Sexta-feira à noite e saímos para comemorar o bom andamento de nossa nova vida. Estamos em um pub e Johnnie me apresenta alguns de seus amigos, inclusive Keith Mars,  sucesso recente que lançou o nome da sua gravadora nos holofotes da indústria musical californiana; “Era só questão de tempo para se tornar um sucesso nacional”, Johnnie disse enquanto entramos em uma sala privada.
Há diversos rastros de estrela cadente em cima da mesa nos aguardando. Aspiro duas delas quase que de uma vez e meu corpo relaxa e dispara. Pego Johnnie honey, meu Johnnie, e danço com ele pelo cômodo banhado em uma luz azul. Agarro o desgraçado e o beijo, aperto seu corpo contra o meu, forte, intenso. Bebo vodka com uma bala, a consciência resiste quase se partindo.
Não sei quanto tempo se passou desde que estamos aqui, nem quanto cheirei ou bebi, e a euforia está diminuindo. Está indo embora rápido demais e ela não se torna apatia. Sinto meu corpo formigando e começo a suar frio, perco o equilíbrio. Sinto nojo de mim mesma, olho ao redor e vejo a estupidez de toda aquela decadência. Sinto vontade de beber veneno ou pular de um prédio. Começo a tremer e desabo no chão. Johnnie vem ao meu encontro, alarmado.
– Merda, Steve! – ele grita – Você matou a puta!
E Johnnie caminha em direção à porta com Keith a tiracolo.
Oh, Johnnie honey, meu coração está batendo mais rápido, mas não é por amor.
Alguém me ampara enquanto diz com a voz vacilante “Puta merda, eu só trouxe as coisas!”. Reviro os olhos e a língua embola na boca. Mesmo com meu corpo colapsando minha mente está serena. Tudo está distante, alheio e opaco. Convulsiono, me debato. Coração e cabeça parecem que vão explodir. O azul escurece cada vez mais, o som fica abafado, parece que o tato está parando de funcionar, até que...



(Conto mais votado no encontro de 03/10/2017)

Gabriel Cerqueira não faz a menor ideia de quem ele é.

 

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