Carolina, por César Manzolillo

Eu quero que você saiba que ainda não decidi se vou mesmo fazer. Não sei se quero levar essa coisa adiante, se preciso mesmo. Claro, sou ansiosa, mas acho que todo mundo é um pouco hoje em dia. Esse mundo tá um caos. Além do mais, me assusta um pouco a ideia de ter de dividir com alguém meus segredos, meus pensamentos mais íntimos. Eu sou atriz, acho que você não sabia, né? Claro que não sabia. A gente mal se conhece. Bem, tô começando mas você acredita que meu primeiro trabalho profissional foi numa peça de Nelson Rodrigues? A temporada acabou domingo passado. Bonitinha mas ordinária. Não, eu não era a protagonista. Era uma das irmãs da Ritinha. A Vera Fischer fez no cinema. A Ritinha, eu quero dizer, ela fez a Ritinha. Acho ele um gênio. Foda mesmo. Manda muito bem. Minha família toda foi assistir. Até meu pai. Ficou meio chateado porque eu apareci de peito de fora. Mentalidade atrasada, meu Deus. Aquela cena tava completamente dentro do contexto. Por mim ele nem teria ido. Já sabia que ia reagir mal. Enfim. E depois eu não quero que as pessoas pensem que sou uma patricinha que veio fazer terapia porque não tem mais nada pra fazer na vida. Tipo pra passar o tempo, entende? Minha família não é rica. Bem classe média. Acho que até pode me ajudar no meu trabalho de atriz. Tudo tem prós e contras, não é mesmo? Eu posso começar. Talvez o ideal seja eu começar sem compromisso. Sei que não sou obrigada a nada. Não precisa você me dizer. Não sou tão tapada. Verdade. Sou filha única. Não sou mimada. Quando falo que sou filha única, as pessoas logo pensam isso. Bem ao contrário. Mas não posso negar que durante muito tempo eu desejei muito ter um irmão, uma irmã, um primo adotado que fosse, a casa mais cheia, mais barulho, mais agitação. Carolina, minha filha, você ainda não está pronta? O táxi já chegou. Temos hora marcada. Por que você se olha tanto nesse espelho? Depois que você entrou pro teatro, resolveu ensaiar tudo. Até a vida. 


(Mote vencedor lido por Daniel Ribas para o encontro de 07/11/2017)


César Manzolillo nasceu no Rio de Janeiro, licenciado em Letras (Português-Literaturas), mestre e doutor em Língua Portuguesa pela UFRJ, com pós-doutorado pela USP. Professor de Língua Portuguesa, lecionou e ofereceu cursos na Faculdade de Letras da UFRJ, no Instituto de Letras das UERJ, no Instituto de Letras da UFF, na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, na UNESA, no SinproRio e no Colégio de Aplicação da UERJ. Diretor da montagem da peça "Senhora dos afogados", de Nelson Rodrigues, apresentada durante o mês de julho de 2008 na Sede da Cia. de Teatro Contemporâneo (Botafogo, Rio de Janeiro). Revisor de textos. Após participação em algumas coletâneas, lança "A angústia e outros presságios funestos", seu primeiro livro de contos.





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

Homens não choram

Cultura: uma visão antropológica, de Sidney W. Mintz